Na escola da sede de freguesia
havia aulas da Escola Primária de manhã e da Telescola de tarde.
Durante os quatro anos que a
escola primária durou, todos os dias olhava a televisão sobre uma prateleira na
parede do lado direito do quadro de ardósia. Porque é que nós não podíamos ver
televisão na sala de aula e os rufias da parte da tarde podiam?
Os rufias da parte da tarde não
eram rufias. Eram só crianças mais altas e mais velhas do que nós.
Na sala existiam objectos que
eram só da telescola que nos estavam interditos. A saber: o armário e a
televisão. O armário fechado à chave dava-me desassossego. Se tinham uma televisão,
que outros objectos extraordinários esconderiam dentro daquele móvel? Se o
tinham encerrado, só podiam estar lá coisas preciosas.
Os rufias da parte da tarde não
eram rufias. É certo que, às vezes quase sempre, nos acertavam com a bola quando
contornávamos o campo de futebol que se localizava entre a porta do edifício e
o portão da escola. É certo que se riam de nós por sermos mais pequenos. Mas eram só
crianças ainda.
Dos monitores da telescola,
alguns eram os padres da freguesia. Chegavam de batina negra e cabeção branco e
atravessavam o recreio, altivos e agigantados pela vestimenta. Eu tinha medo
deles e baixava os olhos quando nos cruzávamos. Na verdade nunca me fizeram mal
nenhum. Às vezes até sorriam.
Os rufias da parte da tarde não
eram rufias. Eram crianças que, por viverem em zonas rurais e mais
desfavorecidas, tinham como única solução para cumprir o ensino obrigatório, estudar
na telescola. Muitas tinham que ajudar os pais que não tinham dinheiro para os
mandar de autocarro para a cidade e frequentar o Ciclo Preparatório.
Veio finalmente um dia, o único,
em que a televisão foi ligada da parte da manhã. Foi no dia 12 de Junho de
1985. Nesse dia foi aberta uma excepção para todos vermos Mário Soares, no
Mosteiro dos Jerónimos, a assinar a entrada de Portugal na CEE. Foi um dia
excitante. Todos tínhamos televisão em casa, porém, poder ligar a televisão da
escola, era o acontecimento do ano lectivo. Mas, por azar, logo nos havia de
calhar ver políticos a rubricar papéis.
Os rufias da parte da tarde não
eram rufias. São a prova de que o país já foi mais desigual do que é nos dias
que correm.
Lembro-me de ver a telescola nas
tardes de chuva enquanto esperava pelos desenhos-animados. Os monitores
ensinavam em directo dos Estúdios do Monte da Virgem. Por estes dias, também se ensinam as nossas
crianças pelo ecrã da televisão. Se a frequência da telescola antiga evidenciava um fosso que alguns meninos não conseguiam atravessar, a telescola de hoje é uma agregadora social. Se é verdade que
a telescola antiga, por ser ensino com bons resultados, ajudou muitas crianças a ultrapassar o tal fosso, hoje ajuda a todos.
Fico comovida e cheia de alento
por ver como professores, sem preparação para darem aulas para um país inteiro e
pela televisão, se chegam à frente e avançam de peito feito para que nenhuma
criança fique para trás.