domingo, 19 de abril de 2020

Dos hábitos- Tomo I


Batatas e cebolas: podem-se contar pelos dedos das mãos as vezes que as comprei. Sempre trouxe da minha terra. Nos primeiros anos cultivadas pela enxada do meu avô. Depois de ele morrer esse testemunho passou para as mãos do meu pai. Sempre da Várzea, com amor. Dir-se-ia que, num frente a frente com os expositores do supermercado, eu saberia escolher melhor. Mas só me sinto perdida na secção de legumes.


Só vou ao trabalho uma vez por semana. Agora demoro exactamente nove minutos de carro até à Penha de França, destronando assim os recordes de todos os Agostos. O tempo de ouvir duas músicas e meia no rádio. As passadeiras sem ninguém para as atravessar e sem trânsito parado no Terreiro do Paço. Um percurso desamparado na cidade despovoada. Sempre na expectativa de ter um carro à minha frente e que esse carro avarie ou vá abaixo para me subir à cabeça uma irritação. Assim conferiria alguma legitimidade a esta vontade de pôr o dedo na buzina e de dizer uns palavrões.


Todas as noites antes de ir dormir dirijo-me à porta de casa para verificar se está com as voltas da fechadura todas voltadas para o rio e se a corrente está bem colocada. Todas as noites desisto antes de lá chegar. Fechadura que não foi aberta não pode estar mal fechada.

domingo, 12 de abril de 2020

Páscoa.




De manhã é na Várzea. Depois da missa o padre começa o Compasso. Vêm descendo desde a Torre, passam pelo Carqueijal e, perto da hora do almoço, entram na Várzea. Os foguetes e a campainha anunciam a sua passagem na ponte que marca a fronteira da povoação. Nesse momento os cabritos entram nos fornos das cozinhas e as pessoas saem à rua, perfumadas e com as roupas mais bonitas. À medida que o padre avança, cresce um cortejo que canta a Aleluia. De casa em casa, a cruz entra nas salas para ser beijada pelas famílias. As salas cheiram a cortinas lavadas e a chão encerado, com as mesas com a melhor toalha de renda, a laranja maior da árvore e um prato de amêndoas de tons esbatidos. Sai o padre e entram os amigos. Cada casa, cada petisco. Cada casa, cada copo. Há-de ser assim até ao sol se pôr.


À hora de almoço cada um recolhe a sua casa para almoços prolongados com o calor do forno e do vinho. Na casa dos meus pais há sempre pão-de-ló e aletria. Há sempre comida a mais. Cada prato é um abraço.


De tarde faz-se a volta da Póvoa e do Arrabalde. Todos com mais alegria pela ressurreição e pelo álcool. Canta-se mais e as conversas de já não te via há muito tempo são mais soltas e honestas. Quando a minha avó Ermelinda era viva, em casa dela, havia sempre ovos cozidos em casca de cebola. Às vezes o padre passava em casa dela já no lusco-fusco e ficávamos à espera dele na cozinha para não desarrumar a sala. Naquela espera comíamos os ovos que sabiam melhor por serem tingidos.


A Páscoa há-de acabar com o sino da igreja da Torre a tocar para avisar que o padre voltou a casa e com uma pequena multidão reunida à volta da mesa da Rosa e do Luís a cantar modinhas, ora antigas ora mais actuais, com o ritmo marcado por notas de tinto e de branco que se foi bebendo ao longo do dia.


Neste domingo de Páscoa que está a findar quase nada disto aconteceu. Não houve roupa nova, nem Compasso. Porém, as aldeias pequenas não se medem aos palmos. Não há vírus que as cale. Hoje, perto da hora de almoço, juntou-se uma aldeia no Zoom. Ouviram-se foguetes, campainhas, bebeu-se vinho branco, visitámos as casas uns dos outros e cantou-se a Aleluia. A tradição já não é o que era mas resiste em novas versões.


Da minha parte, cozi ovos com cascas de cebola. Era uma cebola tramada, daquelas que nos põem em lágrimas. Aliás, foi por culpa dessa cebola em particular que hoje tive que enxugar os olhos quando fui de banda larga passar a Páscoa a casa.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

09 de Abril.


Hoje é dia de ir supermercado. Sinto que tenho a despensa vazia quando as prateleiras ficam menos abauladas com o peso e tenho suores frios se o meu frigorífico começar a mostrar um pequeno espaço na prateleira do meio.
Meia hora antes, consulto a lista com os procedimentos a adoptar e inicio a minha tarefa.
Vestir a roupa de ir à rua, feito.
Prender o cabelo num rabo-de-cavalo para não me fazer comichão na cara, feito.
Calçar as luvas, feito.
Calçar os sapatos que estão à entrada da porta, feito.
Desinfectar as luvas depois de mexer nos sapatos, feito.
Cartão de multibanco e álcool gel num bolso, telemóvel no outro, saco para as compras ao ombro, feito.
Acender a luz das escadas com o cotovelo, feito.
Abrir a porta da rua com o cotovelo, não feito. Foi com a mão porque, convenhamos, há impossíveis.
Avanço pelo meio da estrada na rua estreita e rezo para não encontrar alguém conhecido. Muito menos algum conhecido daqueles que pensam que estão imunes. Não me apetece dar chegas-para-lá a rostos amistosos. Do passeio acenam-me por detrás de uma máscara e eu não identifico as feições. A máscara tem desenhos. Bom gosto. Assusto-me com estes pensamentos e aceno de volta sem saber a quem.

 Não mexas na cara.

Fila na rua à porta do supermercado. Olho para as outras pessoas e as outras pessoas olham para mim como se pertencêssemos todos à mesma irmandade. Umas com máscara, outras sem, outras a olhar para o telemóvel, outras a olhar para o ar. Um senhor velhote fala alto consigo próprio. Sorrio para a pessoa que chega depois de mim e que, louvada seja, mantém a distância social recomendada. Ela sorri-me de volta. Ambas timidamente. Ambas a evitar conversa que nos aproxime.

Não esfregues o olho.

Na porta do supermercado está o mesmo segurança simpático que me sorri sempre e me pergunta se estou bem. E eu sempre a responder-lhe que sim e sempre a perguntar-lhe como tem corrido o trabalho. Ele fala-me das brigas das prioridades dos últimos dias. Estamos nesta nova versão de conversa de elevador até chegar a minha vez. Entro.

Não coces o nariz.

Tento seleccionar só aquilo que é preciso. Mas parece-me que preciso de tudo. Encho o carrinho de mantimentos para um mês. Mas só trago um queijo de cada região do país, uma embalagem de cápsulas de café de cada variedade - Levo ou não levo capuccino? Tu não gostas de capuccino- um frasco de feijão de cada cor e só não trago bifes da vazia porque não como carne. Não estou a açambarcar, estou a ser cautelosa. À cautela, não vão publicar no Facebook uma fotografia de pão a fumegar e eu não tenha aquela farinha específica ali à mão. Arrepender-me-ei mais tarde quando pagar a conta na caixa e, ainda mais tarde, quando tiver que desinfectar tudo.

Não espirres.

Saio.
No regresso a casa, o Sr. Fernando, da perfumaria aqui da rua, chama-me.
Ó filha, anda cá para leres o que me mandaram das Finanças que eu não percebo nada disto.
 Com a maior gentileza digo-lhe que me leia de onde está que eu oiço dali de onde estou.
 Ó filha, eu não ligo a essas coisas.
E avança na minha direcção.
Sr. Fernando, não me toque que eu desafino. Leia daí que eu ajudo.
 Encolhe condescendentemente os ombros e lê. Explico. Antes de avançar digo-lhe que ele tem que se cuidar e manter as distâncias, para curar os meus remorsos por ter sido tão áspera.

Não limpes o canto da boca.

Entro em casa, descalço-me, pouso os sacos na zona COVID. A minha cozinha parece uma cozinha kosher. Em vez de separar os lacticínios da carne, divido os alimentos em potenciais contaminados e desinfectados. Cada categoria com a sua área.

 Desinfecta mais uma vez as mãos.

Uma hora e meia depois, sento-me no sofá e suspiro. Sobrevivi a mais uma ida à rua e resisti muito bem ao contacto físico com os humanos com quem me cruzei. Não deixei ninguém aproximar-se de mim. Da cozinha chega o cheiro da lixívia purificadora. E assim sigo desinfectando os meus dias. Tornando os encontros assépticos e os ambientes controlados.

sábado, 4 de abril de 2020


Hoje a minha mãe faz anos.


Logo a seguir a abrir este blog fui atacada por uma dor do lado esquerdo do meu corpo. Como se me espetassem facas ao mesmo tempo no pescoço, na omoplata e no cotovelo, fui-me tolhendo e as minhas obras ficaram embargadas.


Hoje a minha mãe faz anos. O que eu mais queria era dar-lhe um abraço.


Pesquisei com apuro no Google durante quase cinco minutos e estabeleci o diagnóstico. Trata-se de uma tendinite da coifa dos rotadores. Saber o que se tem costuma trazer algum alívio. Mas, depois de ler este nome, a mim doeu-me mais. Intensificando-se quando, num site de um hospital particular português, a que atribuo razoável credibilidade por ser muito conhecido, li: «Mas fique já a saber: os sintomas de tendinite do ombro podem ser incapacitantes e o melhor é consultar um médico.» Tal sentença, já de si pouco tranquilizadora, tendo em conta a actualidade, pôs-me a chorar. Bem diz o velho ditado: se sentires uma dor, não pesquises no computador.


Hoje a minha mãe faz anos. O que eu mais queria era que ela me desse um abraço.


 A coifa dos rotadores soa a nome de terreno de cultivo. Se fechar os olhos, consigo ver o meu avô a dizer que vai sachar as batatas à Coifa dos Rotadores. Na internet dão-lhe outros nomes. Bursite subacromial faz-me sentir mais doente. Conflito da coifa dos rotadores deixa-me insegura. No entanto, tendinite no manguito rotador traz-me um certo alívio.


 Hoje a minha mãe faz anos. Nas consultas que se fazem no início do ano ao calendário, percebi que este ano não precisava de tirar férias para passar o dia com ela porque calha a um sábado.


Li mais. Nas causas intrínsecas percebi que ter deixado de ir regularmente ao trabalho me tinha tramado. A alteração da postura era a responsável. As qualidades anatómicas do mobiliário do escritório fazem a minha secretária com um banco bonito aqui de casa corar. Troquei o banco por uma cadeira. Nas causas extrínsecas percebi que o uso intensivo do computador era o outro culpado. Passei a uso exclusivo do telemóvel e desisti do teletrabalho por dois dias.


Hoje a minha mãe faz anos. O seu aniversário costuma cheirar a Primavera.


Por conselho de médico amigo, fui à farmácia. Após longa conversa com o farmacêutico acerca dos perigos de tomar um certo medicamento, ele quase me gritou por detrás da máscara: «Tome lá o Brufen que não lhe faz mal nenhum. Por causa dessa história o Ben-U-Ron é que ganhou». Comprei logo duas caixas. Senti-me açambarcadora. Com o caloroso apoio de sacos de sementes de aquecer no microondas e sacos de água quente, fui-me aguentando. Hoje posso congratular-me, e até gabar-me, de que já só sinto facadas na omoplata de meia em meia hora. Mais, esta foi a primeira noite que dormi toda de seguida e sem o saco de água quente debaixo do pescoço.


Hoje a minha mãe faz anos. Neste dia vamos todos jantar ao restaurante favorito dela.


A minha máquina de lavar a loiça finalmente avariou. Após meses de ameaças de deixar os pratos por minha conta, o botão do programa deixou de se iluminar. Agora sinto facadas na omoplata de meia em meia hora e quando lavo a loiça.  


Hoje a minha mãe faz anos. Depois de jantar vamos para casa e cantamos-lhe os Parabéns mais desafinados e amorosos de todos.


Já consigo estar sentada à secretária, sentada na melhor cadeira cá de casa e com os braços bem apoiados na mesa, durante mais de 20 minutos seguidos. Por exemplo, este texto ainda só vai em 2 horas de trabalho. Descobri também que no teletrabalho, ficar dois dias sem trabalhar, só não tem o impacto visual das pilhas de papel acumuladas em cima do teclado.


Hoje a minha mãe faz anos. Juntámos a família numa videochamada e cantámos os Parabéns em tons e tempos diferentes. Houve vários bolos de aniversário e velas sopradas em sítios distantes uns dos outros. Nada substitui as presenças e os abraços. Mas é sempre bom saber que, mesmo a destoar musicalmente, a família está em sintonia.


Parabéns.

Dia da Espiga

Todos os anos é uma surpresa. Numa manhã de uma quinta-feira de Maio a convocar Verão e manga-curta, saio à rua e por todo o lado andam pess...