Hoje é dia de ir supermercado. Sinto
que tenho a despensa vazia quando as prateleiras ficam menos abauladas com o
peso e tenho suores frios se o meu frigorífico começar a mostrar um pequeno
espaço na prateleira do meio.
Meia hora antes, consulto a lista
com os procedimentos a adoptar e inicio a minha tarefa.
Vestir a roupa de ir à rua,
feito.
Prender o cabelo num rabo-de-cavalo
para não me fazer comichão na cara, feito.
Calçar as luvas, feito.
Calçar os sapatos que estão à
entrada da porta, feito.
Desinfectar as luvas depois de
mexer nos sapatos, feito.
Cartão de multibanco e álcool gel
num bolso, telemóvel no outro, saco para as compras ao ombro, feito.
Acender a luz das escadas com o
cotovelo, feito.
Abrir a porta da rua com o
cotovelo, não feito. Foi com a mão porque, convenhamos, há impossíveis.
Avanço pelo meio da estrada na
rua estreita e rezo para não encontrar alguém conhecido. Muito menos algum
conhecido daqueles que pensam que estão imunes. Não me apetece dar chegas-para-lá
a rostos amistosos. Do passeio acenam-me por detrás de uma máscara e eu não identifico as feições. A máscara tem desenhos. Bom gosto. Assusto-me com estes
pensamentos e aceno de volta sem saber a quem.
Não mexas na cara.
Fila na rua à porta do
supermercado. Olho para as outras pessoas e as outras pessoas olham para mim
como se pertencêssemos todos à mesma irmandade. Umas com máscara, outras sem, outras
a olhar para o telemóvel, outras a olhar para o ar. Um senhor velhote fala alto
consigo próprio. Sorrio para a pessoa que chega depois de mim e que, louvada
seja, mantém a distância social recomendada. Ela sorri-me de volta. Ambas
timidamente. Ambas a evitar conversa que nos aproxime.
Não esfregues o olho.
Na porta do supermercado está o
mesmo segurança simpático que me sorri sempre e me pergunta se estou bem. E eu
sempre a responder-lhe que sim e sempre a perguntar-lhe como tem corrido o trabalho. Ele
fala-me das brigas das prioridades dos últimos dias. Estamos nesta nova versão
de conversa de elevador até chegar a minha vez. Entro.
Não coces o nariz.
Tento seleccionar só aquilo que é
preciso. Mas parece-me que preciso de tudo. Encho o carrinho de mantimentos
para um mês. Mas só trago um queijo de cada região do país, uma embalagem de
cápsulas de café de cada variedade - Levo ou não levo capuccino? Tu não gostas de capuccino-
um frasco de feijão de cada cor e só não trago bifes da vazia porque não como
carne. Não estou a açambarcar, estou a ser cautelosa. À cautela, não vão
publicar no Facebook uma fotografia de pão a fumegar e eu não tenha aquela
farinha específica ali à mão. Arrepender-me-ei mais tarde quando pagar a conta
na caixa e, ainda mais tarde, quando tiver que desinfectar tudo.
Não espirres.
Saio.
No regresso a casa, o Sr.
Fernando, da perfumaria aqui da rua, chama-me.
Ó filha, anda cá para leres o que
me mandaram das Finanças que eu não percebo nada disto.
Com a maior gentileza digo-lhe que me leia de
onde está que eu oiço dali de onde estou.
Ó filha, eu não ligo a essas coisas.
E avança na minha direcção.
Sr. Fernando, não me toque que eu
desafino. Leia daí que eu ajudo.
Encolhe condescendentemente os ombros e lê.
Explico. Antes de avançar digo-lhe que ele tem que se cuidar e manter as
distâncias, para curar os meus remorsos por ter sido tão áspera.
Não limpes o canto da boca.
Entro em casa, descalço-me, pouso
os sacos na zona COVID. A minha cozinha parece uma cozinha kosher. Em vez de separar os lacticínios da carne, divido os alimentos
em potenciais contaminados e desinfectados. Cada categoria com a sua área.
Desinfecta mais uma vez as mãos.
Uma hora e meia depois, sento-me
no sofá e suspiro. Sobrevivi a mais uma ida à rua e resisti muito bem ao
contacto físico com os humanos com quem me cruzei. Não deixei ninguém aproximar-se de mim. Da cozinha chega o cheiro da lixívia purificadora. E assim sigo
desinfectando os meus dias. Tornando os encontros assépticos e os ambientes
controlados.