domingo, 15 de novembro de 2020

Dos pesadelos.


 




Levo a mão à cara e apercebo-me de que estou sem máscara no meio da Rua do Carmo. É sábado de manhã. Há muita gente a circular e eu sou a única pessoa de cara descoberta. Filas infinitas à porta das lojas para comprar roupas, sapatos, bugigangas e outros os bens de primeiríssima necessidade, todos a cumprir as normas da DGS, máscara na cara e álcool-gel na mão. Todos, menos eu. Por mais que eu peça, ninguém me empresta uma máscara. Não me deixam entrar em lado nenhum para comprar uma. Todos os dispensadores à porta das lojas estão vazios. Como é que eu vim aqui parar sem estar devidamente apetrechada para cumprir a lei?  Como é que eu saio daqui?

 

 

Fazes os mesmos gestos suaves e tens o mesmo jeito no cabelo, ali no lado esquerdo, por cima da testa, uma espécie de inversão de marcha capilar. Eu, que passei dias a olhar-te pela metade, agora não conheço essa cara, que não foi a que eu criei para ti. Desenhei-te com o meu lápis mental, com outro sorriso, outro queixo e outra expressão de seriedade. O que faço ao outro rosto agora? Aquele que não existe a não ser para mim. Agora já não consigo dizer-te as mesmas coisas que te dizia antes, porque afinal não te conheço. Tiraste a máscara e vi uma face que não era a tua.

 

 

A Selecção Nacional está a perder com a França, mas o silêncio não é por estarmos a roer as unhas em frente ao ecrã da televisão. No centro da cidade não se houve nada. Ninguém regressa a casa na noite calada. Não há passos, nem vozes, nem motores. Recolhemos e estamos atordoados sem saber o que fazer às palavras. Já não queremos usá-las em videochamadas nem em longas conversas telefónicas. Já não há novidade em nada do que está a acontecer. Estamos em normalidade obrigatória.


domingo, 25 de outubro de 2020

Das saudades.

 


Dos amigos a jantar cá em casa. Todos encostadinhos uns aos outros. Ombros com ombros, doze pessoas à volta de uma mesa que só dá para seis. Das cotoveladas sem ter que pedir desculpa. De seres-humanos devidamente calçados e espalhados em pequenos grupos entre a sala e a cozinha. Enquanto uns abrem as garrafas, alguém mexe o tacho.

 

De beber o vinho do teu copo sem pensar.

 

De baralhar os copos e provar o peixe de prato alheio. Com garfo alheio. Das gargalhadas com a boca bem aberta, daquelas que mostram a dentição quase toda, das exaltações políticas que fazem soltar gafanhotos, das proximidades dos rostos para segredos e dos abraços espontâneos. De passar a mão pelos ombros, de sacudir uma pestana ou de limpar uma lágrima na face de um amigo.

 

De estender a mão.

 

De o álcool só servir para assar chouriças. De precisar de álcool para assar chouriças e não haver cá em casa porque se evaporou da garrafa esquecida no fundo da prateleira. De beber álcool sem hora limite, à noite, na rua, no aperto das portas dos bares ou na plateia de um concerto.

 

De cheirar a nuca dos bebés e de lhes repenicar beijinhos nas bochechas.

 

De não me perturbar com os abraços nos filmes. De dar o braço e de dar uma mãozinha. De respirar fundo. De forçar a entrada num elevador cheio de gente. De dar uma espreitadela ao livro da pessoa que vai ao meu lado no autocarro. De ler nos lábios. De me sentir sozinha no meio de uma multidão.

 

De abraçar os meus pais.


domingo, 5 de julho de 2020

Adeus a um desconhecido.





«Will you recognize me?
Call my name or walk on by»
Simple Minds, Don't You (Forget About Me)


Quem nunca fingiu que não viu alguém conhecido na rua que atire a primeira pedra. Foca-se o olhar num ponto imaginário, jamais se desvia e desaparecemos do campo de visão do outro o mais depressa que conseguimos.
Quem nunca percebeu que alguém fingiu que não o viu na rua, ficou agradecido e até ajudou, focando o olhar num ponto imaginário, que atire uma pedra também.


Esses tempos terminaram. As máscaras vieram acabar com momentos embaraçosos e com algumas frases clássicas. «Passou por mim e fingiu que não me viu» e «Mudou de passeio só para não me falar» vão sair de circulação.
Com a cara tapada e com as expressões bloqueadas, quem precisa de disfarçar? Até podemos olhar nos olhos e ficar em silêncio. E se o outro nos vier pedir batatinhas, podemos sempre dizer que não o estávamos a reconhecer. A culpa não é nossa, é deste pedaço palerma de pano, até parece que nos tolda os sentidos.


Dá uma sensação de liberdade tão boa não ter que cumprimentar o vizinho do 4.º dto. e ficar duas horas a ouvi-lo queixar-se das infiltrações ou escapar àquela conversa chata que vai acabar invariável e tragicamente num «Quando jantamos?», não dá?
Só que não. As máscaras trazem distâncias e dúvidas. Será que conheço? Será que é da televisão ou trabalha comigo? Aqueles olhos não me são estranhos. Diria que está a sorrir-me, mas pode ser só miopia. Tenho quase a certeza que andei com ela no Liceu, está mais gordinha. Tenho quase a certeza que é ela. Quase. Se não ia falar-lhe.


Resolvi pois que não vou passar por amigos sem os reconhecer. Quem me fixar por mais de três segundos leva com o meu olá e com um sorriso invisível por trás do pano palerma. Pelo sim, pelo não, para não deixar que os outros se tornem translúcidos, vou andar pela rua a dizer adeus a desconhecidos.





domingo, 14 de junho de 2020

Santo António sem Lisboa.



Ai que saudades do cheiro das sardinhas no ar. Ai que são as que sabem melhor, assim deitadas em cima de uma fatia de broa para absorver o molho. Que triste que é este ano não haver cerveja a verter dos copos cambaleantes e xixis furtivos em becos ou entre automóveis, não é?

Pois, para mim, não. Fiz máquinas de roupa sucessivas. Estendi os lençóis na varanda e, quando secaram, continuavam a cheirar a detergente e amaciador e espalhavam campos de flores pela casa. Nada de odores malignos de grelhas a ambientarem os compartimentos. Nada de pivete a urinol aqui na rua, nem copos de plástico na entrada da porta. E a broa, só engorda.

Sentem falta de manjericos cheirosos com quadras populares, das multidões nas ruas estreitas, das luzes dos arraiais e dos balões a dançarem na brisa nocturna?

Pois eu não. Os manjericos são plantinhas fraquinhas e cheias de caprichos: só se podem regar ao luar, só se podem cheirar com a mão e secam ainda antes do mês acabar. Quem não gosta de descer a Bica de aperto em aperto sem poisar os pés no chão? E que dizer daquelas luzes irritantes e frouxas que não permitem distinguir os ébrios dos sóbrios? E os balões amolgados soam a papel engelhado.

Sentem falta das marchas populares? Das cores, das roupas, dos brilhos e das marchinhas a rimar com Lisboa e com o Tejo?

Pois eu não. Horas de espera na Avenida para acabar sempre atrás de alguém muito alto. Infinitas transmissões televisivas e marchantes com coisas estranhas na cabeça e nas saias. A minha marcha é mais linda do que a tua. Não é? Confirmo amanhã no telejornal porque agora não oiço nada.

Sentem falta das barraquinhas, das bancadas mal-amanhadas, das imperiais fresquinhas, de gente alegre, dos bailaricos, de sorrisos abertos pelo álcool, de ruas a transbordar de alegria, do Verão a chegar e modinhas pimba até o sol nascer? Sentem falta de ir com a amiga querida deitar moedas à estátua do Santo António e pedir desejos, de descer da Cerca Moura ao Campo das Cebolas e encontrar amigos a cada passo?

Pois eu não. Eu prefiro um dia igual aos outros. Desbotado, limpo e silencioso. Este tom asséptico que a cidade ganhou só traz aquela beleza triste que apela à escrita de letras de fados. E quem prefere sol e sardinhas a isto? Pois eu não.


 With a little help from my friends.

domingo, 24 de maio de 2020

A primeira semana.



É uma bica curta, se faz o favor. Na chávena da porcelana mais grossa que tiver aí a aquecer por cima da máquina. Desculpe, pode bater com o pires no balcão para ouvirmos que é de loiça e depois, se não for pedir demais, atire-lhe com a colher para se escutar o som metal a bater no vidrado? Muito agradecida.

Quero meia dose de filetes com arroz de tomate. Para comer aqui. Ali, melhor dizendo, corajosamente na esplanada. Sim, sou só eu. Eu e comida que não foi feita por mim ou que não vem suada e mole numa caixa de plástico. Para beber? Champanhe, por favor. Impõe-se um brinde.

Uma cotovelada. Uma imperial. Uma distância social suficiente para desvendar o rosto a rostos amigos. O líquido gelado a descer pela garganta com a sensação de libertação que o tempo quente traz. Tal como o Verão sabemos que este desconfinamento é efémero. Vamos desconfiando e desconfinando.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Das máscaras.



Sempre pensei em máscaras como objectos transitórios. Agora, durante uns momentos, escondo o meu rosto porque quero fingir que sou outro. Temporárias e ocasionais, disfarçam e dissimulam. Ou simulam.

A transitoriedade já não é o que era. Agora as máscaras servem para transitarmos entre nós. São separadores de pessoas e bloqueadores de expressões.
Agora, durante uns tempos, protejo-me daquilo que anda aqui no ar entre tu e eu.

Os olhos afinal não são o espelho da alma porque não mostram tudo. Há olhos que sorriem e olhos que se espantam. Mas nunca saberemos em que estado estão as almas se não virmos o seu reflexo a corpo inteiro. Como os lábios se movem, como o nariz se franze, como as bochechas oscilam e como o queixo sobe.

 Como poderemos agora deitar a língua de fora a alguém? Sorrir com os dentes todos ou ficar boquiaberto não vale nada nos dias que correm.
É certo que franzir o sobrolho será sempre tido em conta, mas, como distinguiremos as lágrimas de crocodilo das genuínas?

Como em tudo, há vantagens. As emoções estão previamente escondidas e não temos que andar por aí a oferecer sorrisos amarelos. Podemos sempre fingir que não reconhecemos alguém, evitando conversas indesejadas, e estamos sempre preparados para fazer um assalto.

Quem vê máscaras não vê corações. Passaremos os próximos tempos a falar com estranhos.


domingo, 17 de maio de 2020

Telescola.




Na escola da sede de freguesia havia aulas da Escola Primária de manhã e da Telescola de tarde.
Durante os quatro anos que a escola primária durou, todos os dias olhava a televisão sobre uma prateleira na parede do lado direito do quadro de ardósia. Porque é que nós não podíamos ver televisão na sala de aula e os rufias da parte da tarde podiam?

Os rufias da parte da tarde não eram rufias. Eram só crianças mais altas e mais velhas do que nós.

Na sala existiam objectos que eram só da telescola que nos estavam interditos. A saber: o armário e a televisão. O armário fechado à chave dava-me desassossego. Se tinham uma televisão, que outros objectos extraordinários esconderiam dentro daquele móvel? Se o tinham encerrado, só podiam estar lá coisas preciosas.

Os rufias da parte da tarde não eram rufias. É certo que, às vezes quase sempre, nos acertavam com a bola quando contornávamos o campo de futebol que se localizava entre a porta do edifício e o portão da escola. É certo que se riam de nós por sermos mais pequenos. Mas eram só crianças ainda.

Dos monitores da telescola, alguns eram os padres da freguesia. Chegavam de batina negra e cabeção branco e atravessavam o recreio, altivos e agigantados pela vestimenta. Eu tinha medo deles e baixava os olhos quando nos cruzávamos. Na verdade nunca me fizeram mal nenhum. Às vezes até sorriam.

Os rufias da parte da tarde não eram rufias. Eram crianças que, por viverem em zonas rurais e mais desfavorecidas, tinham como única solução para cumprir o ensino obrigatório, estudar na telescola. Muitas tinham que ajudar os pais que não tinham dinheiro para os mandar de autocarro para a cidade e frequentar o Ciclo Preparatório.

Veio finalmente um dia, o único, em que a televisão foi ligada da parte da manhã. Foi no dia 12 de Junho de 1985. Nesse dia foi aberta uma excepção para todos vermos Mário Soares, no Mosteiro dos Jerónimos, a assinar a entrada de Portugal na CEE. Foi um dia excitante. Todos tínhamos televisão em casa, porém, poder ligar a televisão da escola, era o acontecimento do ano lectivo. Mas, por azar, logo nos havia de calhar ver políticos a rubricar papéis.

Os rufias da parte da tarde não eram rufias. São a prova de que o país já foi mais desigual do que é nos dias que correm.

Lembro-me de ver a telescola nas tardes de chuva enquanto esperava pelos desenhos-animados. Os monitores ensinavam em directo dos Estúdios do Monte da Virgem.  Por estes dias, também se ensinam as nossas crianças pelo ecrã da televisão. Se a frequência da telescola antiga evidenciava um fosso que alguns meninos não conseguiam atravessar, a telescola de hoje é uma agregadora social. Se é verdade que a telescola antiga, por ser ensino com bons resultados, ajudou muitas crianças a ultrapassar o tal fosso, hoje ajuda a todos.
Fico comovida e cheia de alento por ver como professores, sem preparação para darem aulas para um país inteiro e pela televisão, se chegam à frente e avançam de peito feito para que nenhuma criança fique para trás.

Dia da Espiga

Todos os anos é uma surpresa. Numa manhã de uma quinta-feira de Maio a convocar Verão e manga-curta, saio à rua e por todo o lado andam pess...