quarta-feira, 29 de junho de 2022

Peixinhos da horta.


 

Lisboeta que é lisboeta péla-se por um peixinho fritinho com um arrozinho malandrinho. Assim tudo em diminutivos. Quanto mais pequenininho melhor. Daqueles peixinhos que não chegam para tapar a cova de um dente e com nomes que podiam ter sido dados por meninos que aprenderam a falar há pouco tempo. Ele é pilim, jaquinzinho, petinga, carapauzinho e pescadinhas de rabo na boca.

Comem-se de meia dentada, com cabeça e espinha incluídas e acompanham com um arroz de tomate, de feijão ou de grelos a correr pelo caldo. Uma taça de vinho e está composto um dos repastos mais tradicionais da cidade.

Porém, estes lisboetas são uns criativos, e, há uns séculos, quando o peixe não era para qualquer mesa, criaram uma alternativa mais em conta que se tornou divisa da culinária alfacinha. Chamam-lhe peixinhos da horta.

De acordo com os Doze Meses de Cozinha, uma das bíblias culinárias que há na estante da minha mãe, os peixinhos da horta são dois feijões-verdes fritos envoltos num polme de farinha, gema de ovo, claras em castelo, sal e pimenta. Lembro-me de ser miúda e folhear aquelas páginas de papel de boa gramagem e fotografias apetecíveis e pensar que um dia faria aqueles tais de peixinhos da horta. Coisa que ainda não aconteceu.

Se parafraseamos Camões tantas vezes dizendo que Portugal deu novos mundos ao mundo, também é incontestável que levámos novos sabores aos quatro cantos do planeta. Maria de Lourdes Modesto atesta que no século XVI, quando chegaram os primeiros Jesuítas portugueses ao Japão, encontraram um povo que não percebia nada de fritos. Quando chegou a Quaresma, os missionários respeitaram o período de abstinência de carne e lá fritaram uns jaquinzinhos e uns peixinhos da horta que deram a provar aos japoneses. E não é que eles gostaram?

O sucesso foi tal que originou um dos pratos japoneses mais afamados. A tempura come-se hoje em todo o lado. O nome vem da expressão latina que designa a Quaresma, ad tempora quadragesimae, que os portugueses naquela época tinham simplificado para Têmporas. E se os japoneses diversificaram a utilização do polme delicioso em vários outros alimentos, a verdade é que não fazem tempura com carne.

Cá por Lisboa, ovo e farinha só se põem à volta do que é pescado. Refeição que é refeição dá aos vegetais o papel secundário e deixa brilhar o peixe. Nem que seja o peixinho da horta.


sexta-feira, 17 de junho de 2022

Camões.

 


Os pontos de encontro são sempre pontos de partida. O ponto onde coincidimos com alguém num tempo certo para depois seguirmos juntos, ou separados. Todas as cidades têm um ponto de encontro. Todas as cidades têm um ponto de partida. Todas as cidades têm um ponto de partida que começa num ponto de encontro.

 

O Camões é o ponto dos encontros de Lisboa. Ali, onde o Bairro Alto arranca para subir a colina, onde o Chiado começa a sua descida até à Baixa, onde a Rua do Loreto avança sobre o Combro e a Rua do Alecrim flutua até ao rio, cruzam-se os percursos. Dali se continua para novos trilhos. O Camões é o ponto de partida de Lisboa. Quem nunca marcou encontro ali para depois ir jantar ao Bairro Alto, desfilar na Rua Garrett ou ir beber um copo à Bica que atire a primeira pedra.

 

O Camões é o único nome da toponímia lisboeta a que, sendo uma praça, todos chamam largo. Quase ninguém vai à Praça de Luiz Vaz de Camões. Agora o Largo do Camões já todos atravessam. Ou por lá se encontram. É que assentar praça é diferente de passar ao largo. E ir chatear o Camões todos vamos de vez em quando, mas não por muito tempo. Que por norma no Camões não se está. Espera-se. Espera-se pelo amigo, pelo 28 ou pela sineta do pastel de nata. Faz-se horas para estar noutro lugar.

 

Boas esperas que alcançam o ritmo da cidade. O Eléctrico 28 a circundar a linda plataforma de calçada portuguesa. A estátua de Camões com pombas que revezam o poleiro da sua cabeça para espreitarem quem vem do Chiado. Os alunos de Erasmus a conviverem à volta do pedestal. A passadeira mais insubordinada de Lisboa em que os carros e os peões têm um acordo secreto para ignorar o semáforo. A conduta de ar que faz os vestidos das meninas esvoaçarem e os cabelos perderem o arranjo. Os prédios pombalinos com as fachadas limpinhas. Os encontros e as partidas. Os olás e as despedidas. Cada metro quadrado, um postal. Cada transeunte, um poema.

 

A Praça de Luiz Vaz de Camões foi inaugurada em 9 de Outubro de 1867. A estátua e o pedestal do poeta têm 7 metros e meio, são da autoria de Victor Bastos e foram custeadas por subscrição pública. Nesse dia, toda a Lisboa foi ali dar. Até os trabalhadores das fábricas da capital tiveram folga para ir ver El-Rei D. Luís descerrar o pano que cobria a grande figura de bronze.

 

 

Desde então o poeta da nação tem visto lá do alto a cidade a mudar. Mudam as modas e os costumes, mudam os transportes, os sons, os comércios e os cheiros. Chegam os turistas e partem os habitantes. Mas Lisboa, que da lei da morte já se libertou há muito tempo, continua circulando num vai e vem de gente que, mais tarde ou mais cedo, há-de ir ter à hora marcada ao Camões.

segunda-feira, 3 de maio de 2021

E que mais?

E que mais há para escrever sobre a  pandemia?

Agora que a vacina já está aí a ser inoculada em força e que quase podemos voltar a respirar fundo, escrevo sobre o quê?

Não que eu tenha escrito tudo aquilo em que pensei e tenha abordado todos os temas e ângulos. Porém estou farta. Estamos todos fartos. Já não tem piada e já não nos comove. Basta.

Somos todos melhores padeiros, temos vasos de plantas verdejantes em todas as divisões, um tomateiro na varanda e as cuecas estão ordenadas por cores dentro das gavetas da cómoda.

Preferimos as máscaras cirúrgicas e damos primazia ao álcool sem gel. Ninguém gosta do cheiro do desinfectante das bombas da Repsol. 

Continuo. Recolho textos antigos, vou aos velhos cadernos, pego em frases que andam soltas em costas de contas de supermercado e em blocos de notas do telemóvel e continuo.


Continuo.


sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

A persistência da memória.


 

Àqueles que se preparam para votar no candidato troca-tintas, peço que façam desse acto um instante inesquecível das vossas vidas. Fixem-no. Apontem na vossa memória o dia em que agarraram no vosso sentido de humanidade e o esconderam no fundo de uma gaveta.

 

Que a memória não vos falhe.

 

Para aqueles que resolveram perder a vergonha e dizer que não têm vergonha de aceitar ideias vergonhosas, peço que guardem o momento. Mais tarde, quando nem conseguirem olhar-se ao espelho, saberão qual foi o exacto momento em que, de acordo com as categorias criadas pelo candidato troca-tintas, deixaram de ser portugueses do bem.

 

Que a memória não vos falhe.

 

Quando a cruz que colocarem no racista, xenófobo, machista, misógino, homofóbico, fascista, mentiroso, populista, rasteiro e troca-tintas, só para lembrar, vos pesar na consciência, lembrem-se que foram vocês que a traçaram.

 

Que a memória não vos falhe.  


domingo, 13 de dezembro de 2020

Das circunstâncias.


 

Nunca tive jeito para conversas de circunstância. Esforço-me sempre demais para evitar que o silêncio abalroe o diálogo. Quando ele chega, sinto que tenho obrigação de resolver aquele desconforto com rapidez.

Dantes, quando a conversa chegava ao limite do «E esta chuva que nunca mais passa?», começava a suar e a procura mental de assuntos comuns com o meu interlocutor disparava em várias direcções. O que é que eu sei da vida desta pessoa que posso aqui introduzir logo a seguir. Ou, com mais frequência, que desculpa é que eu tenho para sair daqui a correr assim que responder: «Já se sabe, é o tempo dela.»

 

O que os filósofos, os sociólogos, os cientistas e os optimistas, que bem se esforçam para descobrir as mudanças positivas que a pandemia nos pode trazer, ainda não ajuizaram é que a verdadeira revolução está nas conversas sobre o tempo. Deixámos de empatar encontros ocasionais com canícula ou pluviosidade. Os meteorologistas que deixem de dar nomes a tempestades e depressões. O verdadeiro furacão das conversas chama-se COVID.

 

A pandemia trouxe possibilidades quase infinitas, fazendo com que mutismos súbitos se transformem em amenas cavaqueiras. O difícil é escolher. Podemos começar por nos mostrar atenciosos e perguntar se a saúde vai bem e sem sustos. Daí a falar sobre os testes é um saltinho. Custou, não custou. Chorou, não chorou. Um cheirinho de subida do número de contaminados, transportes públicos, teletrabalho, economia, restaurantes e, para terminar com ânimo, a vacina. E está uma tarde bem passada. Até um dia destes que, como bem sabemos, será o dia em que nos voltarmos a encontrar por acaso.

 

Se, depois de nos safarmos com distinção, o nosso interlocutor avançar, entusiasmado porque afinal tínhamos muitos assuntos para pôr em dia, com um cafezinho em breve ou, quem sabe, um jantarinho, eis que acontece magia de novo. Bem que gostávamos, mas, já se sabe, há que recolher. Não é por mim, é por ti. Temos que nos proteger uns aos outros e o melhor é não arriscar. Mas, quando isto tudo passar, é certo que marcamos qualquer coisa. Vamos falando. Quem é vivo sempre desaparece.

domingo, 6 de dezembro de 2020

A rua.


 


Eram treze horas e três minutos quando virei a esquina que dobra do largo para a minha rua. Os dois primeiros edifícios de cada um dos lados desta rua onde eu moro são, desde há muitos anos, ruínas. De um lado, os falidos e duas vezes ardidos Armazéns do Conde Barão. Com as entradas todas tapadas com tijolos, servem de suporte a cartazes que anunciam filmes mais a dar para o europeu e independente, exposições mais a dar para o alternativo e algumas palavras de ordem rabiscadas nos espaços que sobram.


Do outro lado, o decadente e também entijolado Palácio do Conde-Barão. A diversidade de nomes não é muito grande aqui na zona. Mais se comprova se vos revelar que o largo a que me refiro no início se chama Largo do Conde-Barão. No palácio não se colam cartazes. Deverá existir entre os profissionais de colagem algum código deontológico que não lhes permite esfregar cola debalde em pedras de lioz. Já os profissionais do rabisco, uma espécie notoriamente menos preocupada com a preservação da beleza mesmo que em declínio, não se preocupam assim tanto.


Eram treze horas e três minutos quando me encontrei desabrigada e sozinha entre estes dois edifícios ocos. Fiquei ali, sem conseguir dar mais passos, a encarar os ausentes. Nem movimento, nem som. Moro aqui há muitos anos. No princípio esta rua metia medo por ser escura e só ter prédios velhos, motivo de conversa séria da minha mãe sobre não ser um bom sítio para viver, depois foi ficando cheia, negócios novos, turistas e até cafés que servem tostas de abacate e meias-de-leite com nomes italianos e desenhos na espuma. Porém, a não ser nos tempos em que se podia regressar a casa a altíssimas horas da noite, nunca a tinha assim encontrado. Não se via ninguém. Nem sequer lá ao fundo onde a rua cruza com outras ruas mais movimentadas. Foram só alguns segundos. Mas foram os suficientes para entender que, desta vez, veio mesmo mal ao mundo.


Neste ano, em que tudo correu como o inesperado, a minha rua vazia a um sábado à hora de almoço não é um fenómeno digno de assunto, é só um detalhe sem interesse para a história que se contará no futuro. Mas é o detalhe que me eriçou os pelos dos braços e fez com que me caíssem algumas páginas de poesia barata em cima.


Tive logo ali a certeza de que nunca esqueceria aquele momento curto e comum nos dias que passam. Recolher obrigatório, rua vazia. Contudo era uma imagem nunca vista e guardada para sempre no meu álbum mental. Aí e no álbum de fotografias do meu telemóvel. Como todos sabemos, há uma pandemia mais antiga entre nós. É o vírus fotográfico. Se não fotografarmos, não aconteceu. Assim, apressei-me a arquivá-la entre as 7 488 imagens inesquecíveis que trago na mala. Eram treze horas e três minutos.


domingo, 15 de novembro de 2020

Dos pesadelos.


 




Levo a mão à cara e apercebo-me de que estou sem máscara no meio da Rua do Carmo. É sábado de manhã. Há muita gente a circular e eu sou a única pessoa de cara descoberta. Filas infinitas à porta das lojas para comprar roupas, sapatos, bugigangas e outros os bens de primeiríssima necessidade, todos a cumprir as normas da DGS, máscara na cara e álcool-gel na mão. Todos, menos eu. Por mais que eu peça, ninguém me empresta uma máscara. Não me deixam entrar em lado nenhum para comprar uma. Todos os dispensadores à porta das lojas estão vazios. Como é que eu vim aqui parar sem estar devidamente apetrechada para cumprir a lei?  Como é que eu saio daqui?

 

 

Fazes os mesmos gestos suaves e tens o mesmo jeito no cabelo, ali no lado esquerdo, por cima da testa, uma espécie de inversão de marcha capilar. Eu, que passei dias a olhar-te pela metade, agora não conheço essa cara, que não foi a que eu criei para ti. Desenhei-te com o meu lápis mental, com outro sorriso, outro queixo e outra expressão de seriedade. O que faço ao outro rosto agora? Aquele que não existe a não ser para mim. Agora já não consigo dizer-te as mesmas coisas que te dizia antes, porque afinal não te conheço. Tiraste a máscara e vi uma face que não era a tua.

 

 

A Selecção Nacional está a perder com a França, mas o silêncio não é por estarmos a roer as unhas em frente ao ecrã da televisão. No centro da cidade não se houve nada. Ninguém regressa a casa na noite calada. Não há passos, nem vozes, nem motores. Recolhemos e estamos atordoados sem saber o que fazer às palavras. Já não queremos usá-las em videochamadas nem em longas conversas telefónicas. Já não há novidade em nada do que está a acontecer. Estamos em normalidade obrigatória.


Dia da Espiga

Todos os anos é uma surpresa. Numa manhã de uma quinta-feira de Maio a convocar Verão e manga-curta, saio à rua e por todo o lado andam pess...