domingo, 6 de dezembro de 2020

A rua.


 


Eram treze horas e três minutos quando virei a esquina que dobra do largo para a minha rua. Os dois primeiros edifícios de cada um dos lados desta rua onde eu moro são, desde há muitos anos, ruínas. De um lado, os falidos e duas vezes ardidos Armazéns do Conde Barão. Com as entradas todas tapadas com tijolos, servem de suporte a cartazes que anunciam filmes mais a dar para o europeu e independente, exposições mais a dar para o alternativo e algumas palavras de ordem rabiscadas nos espaços que sobram.


Do outro lado, o decadente e também entijolado Palácio do Conde-Barão. A diversidade de nomes não é muito grande aqui na zona. Mais se comprova se vos revelar que o largo a que me refiro no início se chama Largo do Conde-Barão. No palácio não se colam cartazes. Deverá existir entre os profissionais de colagem algum código deontológico que não lhes permite esfregar cola debalde em pedras de lioz. Já os profissionais do rabisco, uma espécie notoriamente menos preocupada com a preservação da beleza mesmo que em declínio, não se preocupam assim tanto.


Eram treze horas e três minutos quando me encontrei desabrigada e sozinha entre estes dois edifícios ocos. Fiquei ali, sem conseguir dar mais passos, a encarar os ausentes. Nem movimento, nem som. Moro aqui há muitos anos. No princípio esta rua metia medo por ser escura e só ter prédios velhos, motivo de conversa séria da minha mãe sobre não ser um bom sítio para viver, depois foi ficando cheia, negócios novos, turistas e até cafés que servem tostas de abacate e meias-de-leite com nomes italianos e desenhos na espuma. Porém, a não ser nos tempos em que se podia regressar a casa a altíssimas horas da noite, nunca a tinha assim encontrado. Não se via ninguém. Nem sequer lá ao fundo onde a rua cruza com outras ruas mais movimentadas. Foram só alguns segundos. Mas foram os suficientes para entender que, desta vez, veio mesmo mal ao mundo.


Neste ano, em que tudo correu como o inesperado, a minha rua vazia a um sábado à hora de almoço não é um fenómeno digno de assunto, é só um detalhe sem interesse para a história que se contará no futuro. Mas é o detalhe que me eriçou os pelos dos braços e fez com que me caíssem algumas páginas de poesia barata em cima.


Tive logo ali a certeza de que nunca esqueceria aquele momento curto e comum nos dias que passam. Recolher obrigatório, rua vazia. Contudo era uma imagem nunca vista e guardada para sempre no meu álbum mental. Aí e no álbum de fotografias do meu telemóvel. Como todos sabemos, há uma pandemia mais antiga entre nós. É o vírus fotográfico. Se não fotografarmos, não aconteceu. Assim, apressei-me a arquivá-la entre as 7 488 imagens inesquecíveis que trago na mala. Eram treze horas e três minutos.


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