segunda-feira, 3 de maio de 2021

E que mais?

E que mais há para escrever sobre a  pandemia?

Agora que a vacina já está aí a ser inoculada em força e que quase podemos voltar a respirar fundo, escrevo sobre o quê?

Não que eu tenha escrito tudo aquilo em que pensei e tenha abordado todos os temas e ângulos. Porém estou farta. Estamos todos fartos. Já não tem piada e já não nos comove. Basta.

Somos todos melhores padeiros, temos vasos de plantas verdejantes em todas as divisões, um tomateiro na varanda e as cuecas estão ordenadas por cores dentro das gavetas da cómoda.

Preferimos as máscaras cirúrgicas e damos primazia ao álcool sem gel. Ninguém gosta do cheiro do desinfectante das bombas da Repsol. 

Continuo. Recolho textos antigos, vou aos velhos cadernos, pego em frases que andam soltas em costas de contas de supermercado e em blocos de notas do telemóvel e continuo.


Continuo.


sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

A persistência da memória.


 

Àqueles que se preparam para votar no candidato troca-tintas, peço que façam desse acto um instante inesquecível das vossas vidas. Fixem-no. Apontem na vossa memória o dia em que agarraram no vosso sentido de humanidade e o esconderam no fundo de uma gaveta.

 

Que a memória não vos falhe.

 

Para aqueles que resolveram perder a vergonha e dizer que não têm vergonha de aceitar ideias vergonhosas, peço que guardem o momento. Mais tarde, quando nem conseguirem olhar-se ao espelho, saberão qual foi o exacto momento em que, de acordo com as categorias criadas pelo candidato troca-tintas, deixaram de ser portugueses do bem.

 

Que a memória não vos falhe.

 

Quando a cruz que colocarem no racista, xenófobo, machista, misógino, homofóbico, fascista, mentiroso, populista, rasteiro e troca-tintas, só para lembrar, vos pesar na consciência, lembrem-se que foram vocês que a traçaram.

 

Que a memória não vos falhe.  


domingo, 13 de dezembro de 2020

Das circunstâncias.


 

Nunca tive jeito para conversas de circunstância. Esforço-me sempre demais para evitar que o silêncio abalroe o diálogo. Quando ele chega, sinto que tenho obrigação de resolver aquele desconforto com rapidez.

Dantes, quando a conversa chegava ao limite do «E esta chuva que nunca mais passa?», começava a suar e a procura mental de assuntos comuns com o meu interlocutor disparava em várias direcções. O que é que eu sei da vida desta pessoa que posso aqui introduzir logo a seguir. Ou, com mais frequência, que desculpa é que eu tenho para sair daqui a correr assim que responder: «Já se sabe, é o tempo dela.»

 

O que os filósofos, os sociólogos, os cientistas e os optimistas, que bem se esforçam para descobrir as mudanças positivas que a pandemia nos pode trazer, ainda não ajuizaram é que a verdadeira revolução está nas conversas sobre o tempo. Deixámos de empatar encontros ocasionais com canícula ou pluviosidade. Os meteorologistas que deixem de dar nomes a tempestades e depressões. O verdadeiro furacão das conversas chama-se COVID.

 

A pandemia trouxe possibilidades quase infinitas, fazendo com que mutismos súbitos se transformem em amenas cavaqueiras. O difícil é escolher. Podemos começar por nos mostrar atenciosos e perguntar se a saúde vai bem e sem sustos. Daí a falar sobre os testes é um saltinho. Custou, não custou. Chorou, não chorou. Um cheirinho de subida do número de contaminados, transportes públicos, teletrabalho, economia, restaurantes e, para terminar com ânimo, a vacina. E está uma tarde bem passada. Até um dia destes que, como bem sabemos, será o dia em que nos voltarmos a encontrar por acaso.

 

Se, depois de nos safarmos com distinção, o nosso interlocutor avançar, entusiasmado porque afinal tínhamos muitos assuntos para pôr em dia, com um cafezinho em breve ou, quem sabe, um jantarinho, eis que acontece magia de novo. Bem que gostávamos, mas, já se sabe, há que recolher. Não é por mim, é por ti. Temos que nos proteger uns aos outros e o melhor é não arriscar. Mas, quando isto tudo passar, é certo que marcamos qualquer coisa. Vamos falando. Quem é vivo sempre desaparece.

domingo, 6 de dezembro de 2020

A rua.


 


Eram treze horas e três minutos quando virei a esquina que dobra do largo para a minha rua. Os dois primeiros edifícios de cada um dos lados desta rua onde eu moro são, desde há muitos anos, ruínas. De um lado, os falidos e duas vezes ardidos Armazéns do Conde Barão. Com as entradas todas tapadas com tijolos, servem de suporte a cartazes que anunciam filmes mais a dar para o europeu e independente, exposições mais a dar para o alternativo e algumas palavras de ordem rabiscadas nos espaços que sobram.


Do outro lado, o decadente e também entijolado Palácio do Conde-Barão. A diversidade de nomes não é muito grande aqui na zona. Mais se comprova se vos revelar que o largo a que me refiro no início se chama Largo do Conde-Barão. No palácio não se colam cartazes. Deverá existir entre os profissionais de colagem algum código deontológico que não lhes permite esfregar cola debalde em pedras de lioz. Já os profissionais do rabisco, uma espécie notoriamente menos preocupada com a preservação da beleza mesmo que em declínio, não se preocupam assim tanto.


Eram treze horas e três minutos quando me encontrei desabrigada e sozinha entre estes dois edifícios ocos. Fiquei ali, sem conseguir dar mais passos, a encarar os ausentes. Nem movimento, nem som. Moro aqui há muitos anos. No princípio esta rua metia medo por ser escura e só ter prédios velhos, motivo de conversa séria da minha mãe sobre não ser um bom sítio para viver, depois foi ficando cheia, negócios novos, turistas e até cafés que servem tostas de abacate e meias-de-leite com nomes italianos e desenhos na espuma. Porém, a não ser nos tempos em que se podia regressar a casa a altíssimas horas da noite, nunca a tinha assim encontrado. Não se via ninguém. Nem sequer lá ao fundo onde a rua cruza com outras ruas mais movimentadas. Foram só alguns segundos. Mas foram os suficientes para entender que, desta vez, veio mesmo mal ao mundo.


Neste ano, em que tudo correu como o inesperado, a minha rua vazia a um sábado à hora de almoço não é um fenómeno digno de assunto, é só um detalhe sem interesse para a história que se contará no futuro. Mas é o detalhe que me eriçou os pelos dos braços e fez com que me caíssem algumas páginas de poesia barata em cima.


Tive logo ali a certeza de que nunca esqueceria aquele momento curto e comum nos dias que passam. Recolher obrigatório, rua vazia. Contudo era uma imagem nunca vista e guardada para sempre no meu álbum mental. Aí e no álbum de fotografias do meu telemóvel. Como todos sabemos, há uma pandemia mais antiga entre nós. É o vírus fotográfico. Se não fotografarmos, não aconteceu. Assim, apressei-me a arquivá-la entre as 7 488 imagens inesquecíveis que trago na mala. Eram treze horas e três minutos.


domingo, 15 de novembro de 2020

Dos pesadelos.


 




Levo a mão à cara e apercebo-me de que estou sem máscara no meio da Rua do Carmo. É sábado de manhã. Há muita gente a circular e eu sou a única pessoa de cara descoberta. Filas infinitas à porta das lojas para comprar roupas, sapatos, bugigangas e outros os bens de primeiríssima necessidade, todos a cumprir as normas da DGS, máscara na cara e álcool-gel na mão. Todos, menos eu. Por mais que eu peça, ninguém me empresta uma máscara. Não me deixam entrar em lado nenhum para comprar uma. Todos os dispensadores à porta das lojas estão vazios. Como é que eu vim aqui parar sem estar devidamente apetrechada para cumprir a lei?  Como é que eu saio daqui?

 

 

Fazes os mesmos gestos suaves e tens o mesmo jeito no cabelo, ali no lado esquerdo, por cima da testa, uma espécie de inversão de marcha capilar. Eu, que passei dias a olhar-te pela metade, agora não conheço essa cara, que não foi a que eu criei para ti. Desenhei-te com o meu lápis mental, com outro sorriso, outro queixo e outra expressão de seriedade. O que faço ao outro rosto agora? Aquele que não existe a não ser para mim. Agora já não consigo dizer-te as mesmas coisas que te dizia antes, porque afinal não te conheço. Tiraste a máscara e vi uma face que não era a tua.

 

 

A Selecção Nacional está a perder com a França, mas o silêncio não é por estarmos a roer as unhas em frente ao ecrã da televisão. No centro da cidade não se houve nada. Ninguém regressa a casa na noite calada. Não há passos, nem vozes, nem motores. Recolhemos e estamos atordoados sem saber o que fazer às palavras. Já não queremos usá-las em videochamadas nem em longas conversas telefónicas. Já não há novidade em nada do que está a acontecer. Estamos em normalidade obrigatória.


domingo, 25 de outubro de 2020

Das saudades.

 


Dos amigos a jantar cá em casa. Todos encostadinhos uns aos outros. Ombros com ombros, doze pessoas à volta de uma mesa que só dá para seis. Das cotoveladas sem ter que pedir desculpa. De seres-humanos devidamente calçados e espalhados em pequenos grupos entre a sala e a cozinha. Enquanto uns abrem as garrafas, alguém mexe o tacho.

 

De beber o vinho do teu copo sem pensar.

 

De baralhar os copos e provar o peixe de prato alheio. Com garfo alheio. Das gargalhadas com a boca bem aberta, daquelas que mostram a dentição quase toda, das exaltações políticas que fazem soltar gafanhotos, das proximidades dos rostos para segredos e dos abraços espontâneos. De passar a mão pelos ombros, de sacudir uma pestana ou de limpar uma lágrima na face de um amigo.

 

De estender a mão.

 

De o álcool só servir para assar chouriças. De precisar de álcool para assar chouriças e não haver cá em casa porque se evaporou da garrafa esquecida no fundo da prateleira. De beber álcool sem hora limite, à noite, na rua, no aperto das portas dos bares ou na plateia de um concerto.

 

De cheirar a nuca dos bebés e de lhes repenicar beijinhos nas bochechas.

 

De não me perturbar com os abraços nos filmes. De dar o braço e de dar uma mãozinha. De respirar fundo. De forçar a entrada num elevador cheio de gente. De dar uma espreitadela ao livro da pessoa que vai ao meu lado no autocarro. De ler nos lábios. De me sentir sozinha no meio de uma multidão.

 

De abraçar os meus pais.


domingo, 5 de julho de 2020

Adeus a um desconhecido.





«Will you recognize me?
Call my name or walk on by»
Simple Minds, Don't You (Forget About Me)


Quem nunca fingiu que não viu alguém conhecido na rua que atire a primeira pedra. Foca-se o olhar num ponto imaginário, jamais se desvia e desaparecemos do campo de visão do outro o mais depressa que conseguimos.
Quem nunca percebeu que alguém fingiu que não o viu na rua, ficou agradecido e até ajudou, focando o olhar num ponto imaginário, que atire uma pedra também.


Esses tempos terminaram. As máscaras vieram acabar com momentos embaraçosos e com algumas frases clássicas. «Passou por mim e fingiu que não me viu» e «Mudou de passeio só para não me falar» vão sair de circulação.
Com a cara tapada e com as expressões bloqueadas, quem precisa de disfarçar? Até podemos olhar nos olhos e ficar em silêncio. E se o outro nos vier pedir batatinhas, podemos sempre dizer que não o estávamos a reconhecer. A culpa não é nossa, é deste pedaço palerma de pano, até parece que nos tolda os sentidos.


Dá uma sensação de liberdade tão boa não ter que cumprimentar o vizinho do 4.º dto. e ficar duas horas a ouvi-lo queixar-se das infiltrações ou escapar àquela conversa chata que vai acabar invariável e tragicamente num «Quando jantamos?», não dá?
Só que não. As máscaras trazem distâncias e dúvidas. Será que conheço? Será que é da televisão ou trabalha comigo? Aqueles olhos não me são estranhos. Diria que está a sorrir-me, mas pode ser só miopia. Tenho quase a certeza que andei com ela no Liceu, está mais gordinha. Tenho quase a certeza que é ela. Quase. Se não ia falar-lhe.


Resolvi pois que não vou passar por amigos sem os reconhecer. Quem me fixar por mais de três segundos leva com o meu olá e com um sorriso invisível por trás do pano palerma. Pelo sim, pelo não, para não deixar que os outros se tornem translúcidos, vou andar pela rua a dizer adeus a desconhecidos.





Dia da Espiga

Todos os anos é uma surpresa. Numa manhã de uma quinta-feira de Maio a convocar Verão e manga-curta, saio à rua e por todo o lado andam pess...