domingo, 17 de maio de 2020

Telescola.




Na escola da sede de freguesia havia aulas da Escola Primária de manhã e da Telescola de tarde.
Durante os quatro anos que a escola primária durou, todos os dias olhava a televisão sobre uma prateleira na parede do lado direito do quadro de ardósia. Porque é que nós não podíamos ver televisão na sala de aula e os rufias da parte da tarde podiam?

Os rufias da parte da tarde não eram rufias. Eram só crianças mais altas e mais velhas do que nós.

Na sala existiam objectos que eram só da telescola que nos estavam interditos. A saber: o armário e a televisão. O armário fechado à chave dava-me desassossego. Se tinham uma televisão, que outros objectos extraordinários esconderiam dentro daquele móvel? Se o tinham encerrado, só podiam estar lá coisas preciosas.

Os rufias da parte da tarde não eram rufias. É certo que, às vezes quase sempre, nos acertavam com a bola quando contornávamos o campo de futebol que se localizava entre a porta do edifício e o portão da escola. É certo que se riam de nós por sermos mais pequenos. Mas eram só crianças ainda.

Dos monitores da telescola, alguns eram os padres da freguesia. Chegavam de batina negra e cabeção branco e atravessavam o recreio, altivos e agigantados pela vestimenta. Eu tinha medo deles e baixava os olhos quando nos cruzávamos. Na verdade nunca me fizeram mal nenhum. Às vezes até sorriam.

Os rufias da parte da tarde não eram rufias. Eram crianças que, por viverem em zonas rurais e mais desfavorecidas, tinham como única solução para cumprir o ensino obrigatório, estudar na telescola. Muitas tinham que ajudar os pais que não tinham dinheiro para os mandar de autocarro para a cidade e frequentar o Ciclo Preparatório.

Veio finalmente um dia, o único, em que a televisão foi ligada da parte da manhã. Foi no dia 12 de Junho de 1985. Nesse dia foi aberta uma excepção para todos vermos Mário Soares, no Mosteiro dos Jerónimos, a assinar a entrada de Portugal na CEE. Foi um dia excitante. Todos tínhamos televisão em casa, porém, poder ligar a televisão da escola, era o acontecimento do ano lectivo. Mas, por azar, logo nos havia de calhar ver políticos a rubricar papéis.

Os rufias da parte da tarde não eram rufias. São a prova de que o país já foi mais desigual do que é nos dias que correm.

Lembro-me de ver a telescola nas tardes de chuva enquanto esperava pelos desenhos-animados. Os monitores ensinavam em directo dos Estúdios do Monte da Virgem.  Por estes dias, também se ensinam as nossas crianças pelo ecrã da televisão. Se a frequência da telescola antiga evidenciava um fosso que alguns meninos não conseguiam atravessar, a telescola de hoje é uma agregadora social. Se é verdade que a telescola antiga, por ser ensino com bons resultados, ajudou muitas crianças a ultrapassar o tal fosso, hoje ajuda a todos.
Fico comovida e cheia de alento por ver como professores, sem preparação para darem aulas para um país inteiro e pela televisão, se chegam à frente e avançam de peito feito para que nenhuma criança fique para trás.

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