quinta-feira, 18 de maio de 2023

Dia da Espiga




Todos os anos é uma surpresa. Numa manhã de uma quinta-feira de Maio a convocar Verão e manga-curta, saio à rua e por todo o lado andam pessoas a vender ramos de flores camponesas. Lisboa amanhece enfeitada de ramalhetes dourados com salpicos vermelhos. 

Dia da Espiga. Em muitas cidades do Ribatejo, do Alentejo ou nas redondezas do Tejo, a vida suspende-se. Aos quarenta dias contados a partir do domingo de Páscoa é quinta-feira da Ascensão, feriado e dia santo de guarda. Diz-se que é o dia em que mundo pára e que há uma hora em que os pássaros não vão aos ninhos, as águas dos ribeiros não correm, o leite não coalha e o pão não leveda. As pessoas vão aos campos apanhar flores para fazer o ramo que as protegerá o ano inteiro.

Espigas para garantir o pão.

Malmequeres para abonar ouro e prata.

Papoilas para afiançar amor e vida.

Ramos de oliveira para o azeite, a paz e a luz.

Videiras para bom vinho e alegrias.

E alecrim para forças e saúde.

Tudo atado com um cordel e depois guardado atrás da porta à espera do substituto do ano que vem que trará novas bonanças. Assim se cumpre a espiga.

Mas em Lisboa a história é outra.

Não há papoilas nem videiras nos jardins. A espiga chega em carrinhas, já em ramos atados e sai para as ruas em cestos nas mãos de vendedores.

E é vê-los a vender às raparigas esperançosas de um ano próspero e amoroso. E é vê-los a vender às senhoras que desejam pôr comida na mesa de casa todo o ano. E é vê-los a circular pelas mãos das lisboetas como promessas. Pactos que ficam entre a compradora e a espiga. Dois euros e meio de alento. Um alento que se põe atrás da porta e em breve estará seco. Mas não importa. Porque o que conta é a intenção. Durante uma quinta-feira inteira Lisboa fica simples e campesina, de flor na orelha.

Para surtir efeito tem que ser dado. Nem que seja na batota do compras o meu que eu compro o teu com as colegas de trabalho. Que bom que é voltar para casa de ramo de flores do campo na mão, encaixá-lo no prego atrás da porta e sussurrar-lhe quando temos a certeza de que ninguém está por perto: lembra-te sempre do que prometes.


quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Deixar de Fumar- Volume III

 Já lá vai meio ano e mais três dias.

Está a ser muito difícil e ainda assim é mais fácil do que a minha imaginação me fazia prever. Como quase sempre na vida.


A imaginação é uma exagerada.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Deixar de fumar- Volume II

 Não sinto falta de estar a fumar. Já consegui até ficar a ver as estrelas no 15 de Agosto ou sentar-me a beber um café numa esplanada e obrigar-me a ficar uns 10 minutos ali sentada a ver o mundo a passar.

Ainda sinto falta de dividir os meus dias em pausas para cigarros.  Não será ao acaso que pausas e passas são palavras tão parecidas.

Passava as pausas com passas. 

Ainda passo as passas do Algarve.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Deixar de fumar- Volume I

 

Deixei de fumar e deixei de me sentir.

Faz hoje um mês que deixei de fumar. Piso areias movediças ao escrever sobre isso. Piso areias movediças só por estar a escrever. Não me lembro de mim a escrever sem ser fumadora. Nunca fui escritora, mas fui, 30 anos, fumadora.

Dizem-me que serei sempre fumadora.

Nenhuma palavra me define tão bem como fumadora.

Fumadora.


quarta-feira, 29 de junho de 2022

Peixinhos da horta.


 

Lisboeta que é lisboeta péla-se por um peixinho fritinho com um arrozinho malandrinho. Assim tudo em diminutivos. Quanto mais pequenininho melhor. Daqueles peixinhos que não chegam para tapar a cova de um dente e com nomes que podiam ter sido dados por meninos que aprenderam a falar há pouco tempo. Ele é pilim, jaquinzinho, petinga, carapauzinho e pescadinhas de rabo na boca.

Comem-se de meia dentada, com cabeça e espinha incluídas e acompanham com um arroz de tomate, de feijão ou de grelos a correr pelo caldo. Uma taça de vinho e está composto um dos repastos mais tradicionais da cidade.

Porém, estes lisboetas são uns criativos, e, há uns séculos, quando o peixe não era para qualquer mesa, criaram uma alternativa mais em conta que se tornou divisa da culinária alfacinha. Chamam-lhe peixinhos da horta.

De acordo com os Doze Meses de Cozinha, uma das bíblias culinárias que há na estante da minha mãe, os peixinhos da horta são dois feijões-verdes fritos envoltos num polme de farinha, gema de ovo, claras em castelo, sal e pimenta. Lembro-me de ser miúda e folhear aquelas páginas de papel de boa gramagem e fotografias apetecíveis e pensar que um dia faria aqueles tais de peixinhos da horta. Coisa que ainda não aconteceu.

Se parafraseamos Camões tantas vezes dizendo que Portugal deu novos mundos ao mundo, também é incontestável que levámos novos sabores aos quatro cantos do planeta. Maria de Lourdes Modesto atesta que no século XVI, quando chegaram os primeiros Jesuítas portugueses ao Japão, encontraram um povo que não percebia nada de fritos. Quando chegou a Quaresma, os missionários respeitaram o período de abstinência de carne e lá fritaram uns jaquinzinhos e uns peixinhos da horta que deram a provar aos japoneses. E não é que eles gostaram?

O sucesso foi tal que originou um dos pratos japoneses mais afamados. A tempura come-se hoje em todo o lado. O nome vem da expressão latina que designa a Quaresma, ad tempora quadragesimae, que os portugueses naquela época tinham simplificado para Têmporas. E se os japoneses diversificaram a utilização do polme delicioso em vários outros alimentos, a verdade é que não fazem tempura com carne.

Cá por Lisboa, ovo e farinha só se põem à volta do que é pescado. Refeição que é refeição dá aos vegetais o papel secundário e deixa brilhar o peixe. Nem que seja o peixinho da horta.


sexta-feira, 17 de junho de 2022

Camões.

 


Os pontos de encontro são sempre pontos de partida. O ponto onde coincidimos com alguém num tempo certo para depois seguirmos juntos, ou separados. Todas as cidades têm um ponto de encontro. Todas as cidades têm um ponto de partida. Todas as cidades têm um ponto de partida que começa num ponto de encontro.

 

O Camões é o ponto dos encontros de Lisboa. Ali, onde o Bairro Alto arranca para subir a colina, onde o Chiado começa a sua descida até à Baixa, onde a Rua do Loreto avança sobre o Combro e a Rua do Alecrim flutua até ao rio, cruzam-se os percursos. Dali se continua para novos trilhos. O Camões é o ponto de partida de Lisboa. Quem nunca marcou encontro ali para depois ir jantar ao Bairro Alto, desfilar na Rua Garrett ou ir beber um copo à Bica que atire a primeira pedra.

 

O Camões é o único nome da toponímia lisboeta a que, sendo uma praça, todos chamam largo. Quase ninguém vai à Praça de Luiz Vaz de Camões. Agora o Largo do Camões já todos atravessam. Ou por lá se encontram. É que assentar praça é diferente de passar ao largo. E ir chatear o Camões todos vamos de vez em quando, mas não por muito tempo. Que por norma no Camões não se está. Espera-se. Espera-se pelo amigo, pelo 28 ou pela sineta do pastel de nata. Faz-se horas para estar noutro lugar.

 

Boas esperas que alcançam o ritmo da cidade. O Eléctrico 28 a circundar a linda plataforma de calçada portuguesa. A estátua de Camões com pombas que revezam o poleiro da sua cabeça para espreitarem quem vem do Chiado. Os alunos de Erasmus a conviverem à volta do pedestal. A passadeira mais insubordinada de Lisboa em que os carros e os peões têm um acordo secreto para ignorar o semáforo. A conduta de ar que faz os vestidos das meninas esvoaçarem e os cabelos perderem o arranjo. Os prédios pombalinos com as fachadas limpinhas. Os encontros e as partidas. Os olás e as despedidas. Cada metro quadrado, um postal. Cada transeunte, um poema.

 

A Praça de Luiz Vaz de Camões foi inaugurada em 9 de Outubro de 1867. A estátua e o pedestal do poeta têm 7 metros e meio, são da autoria de Victor Bastos e foram custeadas por subscrição pública. Nesse dia, toda a Lisboa foi ali dar. Até os trabalhadores das fábricas da capital tiveram folga para ir ver El-Rei D. Luís descerrar o pano que cobria a grande figura de bronze.

 

 

Desde então o poeta da nação tem visto lá do alto a cidade a mudar. Mudam as modas e os costumes, mudam os transportes, os sons, os comércios e os cheiros. Chegam os turistas e partem os habitantes. Mas Lisboa, que da lei da morte já se libertou há muito tempo, continua circulando num vai e vem de gente que, mais tarde ou mais cedo, há-de ir ter à hora marcada ao Camões.

segunda-feira, 3 de maio de 2021

E que mais?

E que mais há para escrever sobre a  pandemia?

Agora que a vacina já está aí a ser inoculada em força e que quase podemos voltar a respirar fundo, escrevo sobre o quê?

Não que eu tenha escrito tudo aquilo em que pensei e tenha abordado todos os temas e ângulos. Porém estou farta. Estamos todos fartos. Já não tem piada e já não nos comove. Basta.

Somos todos melhores padeiros, temos vasos de plantas verdejantes em todas as divisões, um tomateiro na varanda e as cuecas estão ordenadas por cores dentro das gavetas da cómoda.

Preferimos as máscaras cirúrgicas e damos primazia ao álcool sem gel. Ninguém gosta do cheiro do desinfectante das bombas da Repsol. 

Continuo. Recolho textos antigos, vou aos velhos cadernos, pego em frases que andam soltas em costas de contas de supermercado e em blocos de notas do telemóvel e continuo.


Continuo.


Dia da Espiga

Todos os anos é uma surpresa. Numa manhã de uma quinta-feira de Maio a convocar Verão e manga-curta, saio à rua e por todo o lado andam pess...