Levo a mão à cara e apercebo-me
de que estou sem máscara no meio da Rua do Carmo. É sábado de manhã. Há muita
gente a circular e eu sou a única pessoa de cara descoberta. Filas infinitas à
porta das lojas para comprar roupas, sapatos, bugigangas e outros os bens de
primeiríssima necessidade, todos a cumprir as normas da DGS, máscara na cara e álcool-gel
na mão. Todos, menos eu. Por mais que eu peça, ninguém me empresta uma máscara.
Não me deixam entrar em lado nenhum para comprar uma. Todos os dispensadores à
porta das lojas estão vazios. Como é que eu vim aqui parar sem estar
devidamente apetrechada para cumprir a lei? Como é que eu saio daqui?
Fazes os mesmos gestos suaves e tens
o mesmo jeito no cabelo, ali no lado esquerdo, por cima da testa, uma espécie
de inversão de marcha capilar. Eu, que passei dias a olhar-te pela metade,
agora não conheço essa cara, que não foi a que eu criei para ti. Desenhei-te
com o meu lápis mental, com outro sorriso, outro queixo e outra expressão de
seriedade. O que faço ao outro rosto agora? Aquele que não existe a não ser para
mim. Agora já não consigo dizer-te as mesmas coisas que te dizia antes, porque
afinal não te conheço. Tiraste a máscara e vi uma face que não era a tua.
A Selecção Nacional está a perder
com a França, mas o silêncio não é por estarmos a roer as unhas em frente ao
ecrã da televisão. No centro da cidade não se houve nada. Ninguém regressa a
casa na noite calada. Não há passos, nem vozes, nem motores. Recolhemos e
estamos atordoados sem saber o que fazer às palavras. Já não queremos usá-las
em videochamadas nem em longas conversas telefónicas. Já não há novidade em
nada do que está a acontecer. Estamos em normalidade obrigatória.